Quando choro

Quando choro, no presente, ainda choro agarrada a ti.

É a ti a quem recorro, sempre que dou um passo atrás.

A ti ou à ideia que fiz questão de manter, à tua lembrança mais bela

ou que de uma forma mais crua, simplesmente me convém ou me protege.

Uma lembrança que não vê mais idade, não envelhece hoje, nem amanhã.

Fechou os olhos ao passar do tempo.

Serás para sempre uma imagem que permanece estática e vai permanecer

enquanto o tempo passar por mim.

Vais ser sempre aquele que nunca vai olhar ao espelho e ver uma ruga,

o cabelo grisalho, ou o corpo a mudar.

Vais ser sempre o rapaz dos olhos verdes, da barba cerrada

e da pele branca que se fazia acompanhar religiosamente

de uns fones ao pescoço, fones esses que carregavam um mundo,

um outro mundo para onde voavas quando este não te chegava.

Fones com fios porque nunca soubeste da existência de outros.

Tal como nunca vais saber da existência de outros tantos.

Pensar em ti, num tempo, num momento, com um prazo, é estranho.

Continua a ser confuso, talvez nunca vá ser outra coisa.

Vais ser sempre o rapaz do casaco verde e das calças de ganga

com um atacador a fazer a vez do cinto.

Vais ser sempre um perfume que não é de mais ninguém.

Quando me lembrar de ti, daqui a muitos anos,

vais ser sempre aquele cujo o mundo se resolvia

num caderno de capa preta enrolado na mão

e uma caneta Bic preta no bolso, porque não precisavas de mais nada.

Não precisaste de mais nada.

Vais ser sempre o rapaz da argola de prata na orelha,

o terço por dentro da camisola, o rapaz do rap, o dos poemas.

Vais ser sempre o rapaz dos óculos, que os escondia em casa.

Nunca mais vais precisar deles.

Vais ser sempre o menino rebelde,

cheio de sonhos reprimidos e com tanto por viver.

Serás sempre o espirito indomável com um mundo por resolver,

mundo esse que se revelou maior do que a força para o perceber.

Vais ser sempre aquele que acreditava piamente

que nada durava para sempre.

Como posso eu pensar em mim, mãe,

e imaginar-te com a idade de um filho?

Não tiveste tempo, tempo para provares que podia ser diferente.

Que podias ser diferente.

Não tiveste tempo para procurares ser outra coisa.

E tudo o que tem de cruel,

tem de mágico saber que te tenho ao meu lado,

do jeito que me lembro de ti. Do jeito que escolho lembrar-me de ti.

Por muitas voltas que a vida dê, é definitivo.

Não volta a doer de novo, não da forma como doeu antes.

Recorro sempre a ti, porque é seguro fazê-lo.

Não desiludes. Mais.

És uma memória confortável,

que reconheço sem grande esforço,

que me acompanha e acompanhou sempre,

embora nunca mais se acompanhe.

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